domingo, 8 de novembro de 2009

Lévi-Strauss

7 de novembro de 2009


O século de Lévi-Strauss

Pensador francês morto aos cem anos nos ofereceu um modo de entender o humano como sistema de relação

Ele criou uma teoria inovadora sobre os fundamentos do social; postulou que é possível esboçar a complexidade dos mitos ou dos sistemas de parentesco em poucas equações; propôs que um pensamento sofisticado pode se erigir não apenas sobre conceitos abstratos, mas também sobre categorias do sensível – aliás, ele mesmo o demonstrou numa obra de mais de 3 mil páginas, Mitológicas, que mudou para sempre o modo de entender as culturas indígenas das Américas.

Inspirou-se nas analogias entre mitos e música, ou entre as simetrias da natureza e as das criações humanas. Sem recorrer a sentimentalismos ou transcendências – ele era um homem de ciência –, desafiou ideias convencionais sobre a superioridade da civilização ocidental. Sem pregá-la de um modo explícito, sugeriu uma ética não humanista, fincada na diversidade e na distância (que os ecologistas de todo signo deveriam examinar). Foi criticado como formalista frio, mas também como autor demasiado engenhoso: suas ideias mais sérias podiam, às vezes, ter certo ar de charada.

Claude Lévi-Strauss, que morreu em Paris no último dia 31 de outubro, um mês antes de cumprir os 101 anos, costumava dizer nas entrevistas que ele não mais pertencia ao mundo dos vivos, senão a um século findo, e que se sentia feliz de não ter que adentrar muito no atual, num mundo demasiado obeso, onde a humanidade e o lixo que ela produz proliferam sem pejo, a custa de tudo o mais. E, no entanto, suas ideias têm ainda uma longa vida pela frente. Lévi-Strauss teve uma legião de discípulos, mas não criou escola, no sentido estrito de uma facção acadêmica armada de uma ortodoxia. Historiadores ou filósofos foram muitas vezes mais sensíveis às suas mensagens que os seus colegas de profissão. Suas ideias pairam sobre a cultura ocidental do último meio século, não raro semeadas pelos mesmos críticos que tentavam refutá-las: muito do seu estruturalismo tem sobrevivido aos pós-estruturalistas.

“Redescoberto” em vida nos últimos 20 anos, Lévi-Strauss manifestava, digamos, uma dupla personalidade: de um lado, era um intelectual consagrado cujas obras forneciam o cânone para temas como o racismo e o conceito de progresso (o seu texto Raça e História, procedente de uma conferência encomendada pela Unesco nos anos 1950), a universalidade da razão humana (discutida em O pensamento selvagem, o livro de antropologia mais citado fora dos estreitos limites da disciplina) ou o tabu do incesto (ponto de partida de As estruturas elementares do parentesco). De outro lado, ele inspirava inovações radicais nas ciências humanas: se muitos críticos o catalogaram como formalista foi porque provavelmente não chegaram a ler, ou a entender, o conceito de estrutura lévi-straussiano, que não é um esqueleto ou uma armação, mas um conjunto de transformações.

Contra as essências e as identidades, contra a cultura entendida como padrão fixo, Lévi-Strauss ofereceu um modo de entender o humano como contínua variação, como sistema de relações. Em lugar de aceitar os grandes relatos da História ocidental, com suas mensagens edificantes de progresso ou emancipação, ele sugeriu que a história é feita de modos diferentes de perceber a história: como repetição e adaptação de modelos eternos – é o que preferem as sociedades primitivas ou arcaicas, que gostam de ver como velhas conhecidas mesmo as novidades mais ab-ruptas – ou como uma mudança contínua e acelerada, como gosta de acreditar a nossa civilização, que a cada passo declara encontrar coisas nunca antes vistas no mundo. Outros sugeriram que o mito era a história dos primitivos; ele preferiu indicar que a história servia muito bem de mito aos modernos.

Por sua parte, Lévi-Strauss não quis fazer da ciência outro mito semelhante. Se alguma vez projetou submeter a antropologia a uma linguagem matemática, o resultado foi, paradoxalmente, uma modéstia que nem sempre se encontra nas ciências humanas: ao lado dessas poucas fórmulas e equações, o que destaca é o infinito do mundo que os humanos deverão viver sem que nenhum saber supremo o leve da mão. Talvez seja essa a garantia de atualidade de sua obra: em lugar de certezas codificadas, ela oferece um exemplo de imaginação teórica que sempre encontrará novos objetos na experiência.

Nascido em 1908 de pais judeus, Lévi-Strauss esteve no Brasil nos anos 1930, como membro da missão francesa que contribuiu aos inícios da Universidade de São Paulo. Sua estada não deixou rastro na cultura brasileira – ele era um jovem professor, cujos interesses, de resto, eram pouco acordes com as diretrizes daquela USP inicial –, mas foi para ele uma experiência fundamental: no Brasil, ele realizou a longa viagem de pesquisa (narrada por ele depois em Tristes Trópicos) onde pôde conhecer grupos indígenas como os Kaingang, os Bororo, os Kadiweu e os Nhambiquara.

Pesquisas breves, mas ricas em intuições e que esboçariam as linhas iniciais de 60 anos de trabalho de gabinete, e de centenas de publicações. Essa experiência, ao torná-lo um dos poucos especialistas em etnologia sul-americana da época, lhe garantiu também o exílio em Nova York durante a 2ª Guerra, salvando-o dos campos de concentração. Em Nova York, entrou em contato com as vanguardas científicas europeias e com a imensa obra da antropologia norte-americana de então: ele tornou-se, assim, o primeiro antropólogo verdadeiramente cosmopolita, recolhendo na sua reflexão heranças intelectuais muito diversas, e uma abertura exemplar às outras ciências. Voltando à França, em 1948, aquele homem, oriundo de uma família de artistas e com poucas perspectivas de fazer uma grande carreira acadêmica, chegou, ao cabo de 20 anos, a um lugar culminante da ciência e da cultura francesas: membro da Academia Francesa, professor do Collège de France e fundador do Laboratório de Antropologia desta instituição.

O Brasil só se tornou a segunda pátria de suas ideias já nos anos 1970, e, desde então, seu traço é visível na renovação da etnologia e na criação de uma historiografia dedicada aos temas indígenas. Sobretudo, foi ele quem melhor mostrou que os índios – os representantes por excelência desse mundo de outros que constituem a diversidade brasileira –, muito mais que um problema, um signo do passado ou um objeto da assistência social, são uma fonte de reflexão, uma experiência histórica valiosa e insubstituível. Num último lance de humor, Lévi-Strauss nos obriga agora a celebrar, quase sem solução de continuidade, o centenário e a conclusão de uma trajetória excepcionalmente longa e rica.

* Professor do Departamento de Antropologia da UFSC

http://www.clicrbs.com.br/diariocatarinense/jsp/default2.jsp?uf=2&local=18&sour

Nenhum comentário:

Postar um comentário